23 julho 2015

Sentimentos musicados


Um banco de rua. Esse era seu único companheiro naquele momento em que nada parecia fazer sentido. Sua alma amargurada saltava-lhe do peito em batidas aceleradas. Mais um ano havia se passado desde o acidente. Estava só, sem amigos, família, ou alguém que pudesse fazê-lo sorrir por alguns segundos. Perdera todos, todos os que conheciam suas manias, gostos, detalhes...um dia que ficou marcado para sempre em sua memória.

O mundo parecia continuar seu próprio movimento. Pessoas passavam nos seus carros luxuosos, comerciantes fechavam suas portas, crianças já estavam na mesa de jantar se alimentando pela última vez naquele dia, e dormir tranqüilos. Como doía saber que nada seria como antes, que nunca veria novamente seu grande amor, que não teria o prazer de acompanhar a infância e crescimento dos seus filhos...que seu legado paternal permaneceria com ele.

A verdade era que toda a sua família se resumia a uma pessoa, uma única pessoa que agora não passava de mais uma lembrança em sua memória. A vida tem seus próprios mistérios; viver é saber que tudo é uma questão de tempo para que alguma mudança aconteça.

Uma chuva fininha começou a cair, molhando seu rosto sulcado pelas marcas do tempo. Era novo, mas as intempéries da vida haviam deixado suas consequências. Tão suavemente quanto a chuva que caía, ele começou a ouvir algumas notas doces que bailavam pelo ar, como se tivessem asas. Escorregavam pelo piso molhado do primeiro andar acima de sua cabeça e iam deitar-se melancolicamente em seus ouvidos.

Inevitavelmente, suas próprias lágrimas juntaram-se às gotas de chuva que já o tinham ensopado por completo. Sem dúvidas, aquele era o som de um piano, inconfundível. Ângela...aaah, sua querida Anggie era apaixonada por música, passava horas a fio dedilhando o piano que ambos tinham na sala de estar. Aquele som enchia a casa e dava vida a tudo e todos que fossem tocados pelas suas canções. Sem letras, sem palavras...só aquele suave murmúrio de sentimentos musicados.

Certa noite, encontrou-a sentada à frente do piano, acariciando levemente as teclas de marfim, produzindo um som que por si só já falava. Seus cabelos estavam longos e soltos sobre os ombros, contrastando com sua pele branca como a neve. Sua cabeça pendia suavemente para um lado, olhos fechados e um sorriso imortalizado em seus lábios. Mais do que seus ouvintes, Ângela sabia sentir aquilo que tocava. A luz da lua cheia iluminava a superfície do piano escuro, refletindo no rosto deliciado de sua esposa. Ele não ousou se aproximar. Ficou ali mesmo, parado no umbral da porta, experimentando todas as sensações mais doces que o amor pode proporcionar. Havia um anjo em sua casa, não queria assustá-lo.

Ao som do piano, naquela noite de chuva, seu coração pareceu dilacerado...saudade, amor interrompido, dor...chorou, inconsolado. A vida não significava tanto quando Ângela não preenchia os silêncios com suas canções. Seu coração, já fraco e doente, perdeu ainda mais a cadência. Cada aspiração era um suplício. Assistido de perto pela lua cheia, seu último suspiro foi para a única que teve todos eles durante muitos anos. "Estou chegando, minha Anggie."

1 comentário:

  1. Se inicia com um blog e se concluíra com um livro, permaneça com esforço e dedicação que tudo dará certo ;)

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