24 janeiro 2015

Oliver, um conto (quase) fictício



Provavelmente se você me perguntar quem sou eu não saberei responder. Sei apenas que nasci numa manhã ensolarada no Kansas, região centro-oeste dos Estados Unidos. Meu pai me chamava de Oliver, mesmo sabendo que este deve ser um nome de rapaz, mas eu não ligo, todos me conhecem por ele. E mesmo se ligasse, de que adiantaria? Mudar de nome é nascer de novo no mesmo corpo.

Tenho dez anos, mas às vezes as pessoas confundem minha idade pelo meu rosto maduro, meus olhos sempre com olheiras e o meu sorriso que basicamente não gosta de aparecer. Não tenho motivos para sorrir, talvez um dia eu esqueça de tudo o que vivi e comece a aproveitar a minha infância como deveria ser desde o início. Mas talvez nesse dia eu já não seja criança, e fazer coisas de criança quando se é um adulto não é bem visto na sociedade.

Não tenham pena de mim, alguém digno de pena só deve ser frágil, e eu não sou frágil. Aguentei torturas inimagináveis sem derramar uma lágrima, sem demonstrar sentimento. Nem sei o que é chorar, fui instruída desde cedo a esconder o que sinto. Acabei me acostumando, hoje essa palavra nem faz sentido para mim.

Para quem não me conhece, sou órfã. Quer dizer, hoje sou. Minha mãe fugiu de casa dois dias depois do meu nascimento. Irônico, não? Ser abandonada pela própria mãe antes mesmo de poder conhecê-la bem? Cresci com o meu pai, um sujeito baixo e redondo de tanta bebida. Percebi precocemente os efeitos do álcool, minha experiência vai além de panfletos explicando as consequências do excesso.

Aliás, era eu quem comprava as cervejas que entravam em casa. Não me perguntem como o dono da mercearia permitia, porque até hoje eu não entendo. O que eu sei é que havia sempre três a quatro reservadas para o papai no freezer na loja. Um dia tentei experimentar um pouco que tinha sobrado na garrafa...e sinceramente, não sei dizer por quantos dias o gosto se manteve na minha memória depois daquele dia. Asqueroso. Aprendi essa palavra simplesmente para poder mostrar o quanto eu odiei aquela coisa. E mesmo assim, meu pai adorava-a. Gostava tanto, que bebia todos os dias em todas as refeições.

E como eu cheguei aqui no orfanato? Alguém descobriu que o papai me batia sempre que estava bêbedo. Isso era literalmente 24h do meu dia. Se eu fizesse barulho ao andar, se brincasse na varanda, se conversava com os meus vizinhos pela grade de casa, se assistia desenho...tudo era um motivo. Em troca de todo esse tratamento eu fazia tudo em casa, menos a comida dele, dizia que eu não prestava como cozinheira. Vai dizer isso para alguém com nove anos...

Mas numa manhã, eu me acordei e fui abrir as janelas da sala e vi o papai deitado no sofá com a boca aberta. Não dei muita atenção porque ele sempre dormiu de forma estranha. Saí apenas e fui aplicar uma pomada nas últimas marcas da semana. No fim do dia ainda não havia sinais do papai, então eu fui chamá-lo, mas ele não respirava.

Chamei a minha vizinha e logo a ambulância chegou. Os médicos disseram que foi ataque de coração. Mas como alguém sem coração pode morrer dele? Desde então tenho vivido com outras crianças que foram abandonadas aqui no orfanato. Cada uma tem uma história diferente, cada uma sofreu inocentemente, mas todas sofrem a mesma dor do esquecimento.

Ainda tenho esperanças de conhecer a mamãe, queria saber o motivo da sua partida. Ela deve ter uma boa resposta. Mas porque me deixar com o papai? Não sei se o tempo me dará respostas, mas sei que, infelizmente, a minha história é mais uma de muitas iguais. Eu perdoei o papai por tudo o que me fez, e mesmo que não venha a conhecer a minha mamãe, também está perdoada. Só queria que ninguém mais vivesse o que eu vivi. Isso seria maravilhoso.

Image and video hosting by TinyPic

Sem comentários:

Enviar um comentário

1- Leia antes de comentar;
2- Comentários spam ou com palavrões serão excluídos imediatamente;
3- Deixe o link do seu blog no final do comentário para que eu visite;
4- Anônimos podem comentar, mas deixe o nome no final do texto, por favor. :D